O Navio de Teseu

Um livro que salta das páginas, literalmente.
A primeira vez que peguei nas mãos “O Navio de Teseu” estava em um jantar na casa da minha querida amiga, Ilka. Ela me mostrou como se faz com as coisas raras e fascinantes. E eu lutei muito contra a vontade que me deu de sair correndo e ir até a livraria mais próxima para ter o meu próprio exemplar (caso alguém sinta a mesma coisa, o aeroporto é o lugar de livrarias sempre abertas – fica a dica para os alucinados). Me contive. Assim como tive que me conter sem ter tempo para poder lê-lo. Mas agora consegui. E é um desses livros que te atravessam, ficam na sua cabeça, alma e coração. O projeto gráfico é maravilhoso. Com aparência de uma edição antiga, publicada em 1949, é um típico livro de biblioteca: todo consultado, anotado, manuseado, que vem dentro de uma caixa selada de S. (só lendo para entender o S). A lombada está gasta e as páginas amareladas, rabiscada com comentários. Além disso, entre as folhas há cartas, cartões-postais, recortes de jornais, fotografias e até um mapa desenhado em um guardanapo. É o décimo livro escrito por Straka, um autor desaparecido, o qual todos querem provar sua verdadeira identidade. Um autor perigoso capaz, com sua caneta, de destruir grandes corporações, derrubar governos, ditadores e senhores da guerra... Um autor perdido em uma nuvem de segredos, mistérios e assassinatos. Um autor testemunha dos mais inimagináveis horrores do mundo, dos vivo e também dos mortos... Nas notas de rodapé está uma parte da história, que tenta contextualizar a vida e obra do autor. Nas anotações nas margens do livro, Eric e Jen, dois estudantes de literatura, tentam desvendar o mistério de Straka, enquanto se apaixonam em uma história de amor epistolar improvável...

Não é um livro convencional. Não mesmo. Trata-se de um quebra-cabeça literário criado pelo diretor, roteirista e produtor J.J.Abrams (Lost, Star Wars entre muitos outros) e pelo escritor Doug Dorst. Os dois criaram um livro que pode ser lido em muitas chaves. Alguns vão se perder tentando decifrar os mistérios, códigos e pistas contidos em toda a obra, o que também é divertido. Mas, para mim, o livro é uma celebração à arte, à cultura e à educação. E principalmente uma declaração de amor à escrita e ao poder da imaginação. De como a resistência aos horrores do mundo se funda nestes três pilares. O livro mostra como é fácil os seres humanos se perderem em uma guerra de narrativas, onde a que normalmente prevalece, é a daqueles que destroem os humanos e a natureza sem dó nem piedade... “Começos e términos são a preocupação de todo contador de histórias sério, seja ele homem ou mulher, prodígio ou ancião, bretão ou turco, zulu ou eslavo”. “cuidado ao ligar tudo em um livro à personalidade do autor. Às vezes ficção é apenas ficção”, “é exatamente para isso que servem as fogueiras – diz – Para partilhar histórias. Há uma ligação espiritual entre a chama e a narrativa.”. E em uma das mais  belas passagens do livro, quando os personagens de Straka estão diante de uma deslumbrante descoberta artística em cavernas perdidas, correndo risco de serem assassinados param para observar as pinturas: “por um momento, é mais importante absorver o espetacular do que se preocupar com a questão premente de permanecer vivo. Nota: não é uma descrição ruim do que a arte faz.”,“praticamente todos esses livros parecem pessoais. Como se fosse a fúria de uma pessoa com o mundo e seu amor à palavra escrita. E por fim: “o que começa na água lá deve terminar, e o que nela termina deve mais uma vez começar. Palavras são um presente para os mortos e um alerta pra os vivos.”Na internet é possível encontrar mais histórias relacionadas ao livro, como a Rádio Straka ou um blog chamado A Ilha de obsidiana. Quem ler vai entender do que se trata... O Navio de Teseu é uma obra que nunca termina, não deve terminar... mesmo que o seu fim deva ser imaginado pelo bom leitor.  

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