Precisamos falar sobre a não-ficção

Vamos imaginar que o audiovisual seja dividido em castas. A mais elevada de todas é o cinema. Logo abaixo, ocupando lugar que poderia ser dos sacerdotes, está o documentário. Embaixo, mas não menos pura, está a televisão quando ela faz dramaturgia, jornalismo não-sensacionalista e o esporte. Aqui também transita a casta da publicidade, algo equivalente ao lugar ocupado pelos banqueiros em outros mundos.
 E aí abaixo de tudo isso, equivalente aos parias e intocáveis, está uma casta ruidosa, espalhafatosa, sentimental, chorona, que adora piadas de duplo sentido e torta na cara, fofoqueira, desorganizada, cafona, que não dispensa um glitter e um dourado, adora cozinhar, decoração e viagem...  É a televisão que faz não-ficção/humor. É aí nesse mundo de diversidades que se encontram os realities, os programas de auditório, variedades, entretenimentos, jornalismo sensacionalista, humorísticos de gosto duvidoso, talk-shows entre outros tipos de programas.
Aí agora vamos imaginar que em um dia qualquer aconteceu uma festa intercastas, que terminou em uma grande orgia, onde ninguém era de ninguém, uma loucura e que depois de um tempo (sei lá quantos) nasceu os filhos desta noite fatídica: os vídeos de internet. No nascimento, considerados bastardos inglórios, cheios de defeito e de péssima qualidade. Mas os bastardinhos foram crescendo, crescendo e um dia (também não sei precisar a data) acordaram tipo uma Gisele, jogando o cabelo e pisando com salto agulha nas outras castas.
E agora com essa cara loira e bela, os membros das outras castas tem se apresentado para conquistar o bastardinho, tentando trazê-lo para o seio da família. Mas os rebeldes crescidos sem educação ou filtro, não estão nem aí e querem mais é curtir a vida sem se preocupar com a sua linhagem. E tem uma galera que se dá muito bem com os vídeos de internet. Eles se reconhecem na sua origem pobre e humilde, que são os parias da televisão de não-ficção/humor. Juntos parecem que eles estão mais fortes e interessantes do que seus “pais puros”. Podem se misturar, mas sobrevivem também sozinhos, cada um no seu mundo.
Com exceção da teledramaturgia, que encontrou seu espaço nessa zona, com as séries da Netflix e seus concorrentes, o resto ainda pena para colocar todo mundo na mesma mesa, se é que isso é possível. E é evidente que entre os mais sofredores está a publicidade. Às vezes dá pena de ver...
E o que mais tem me feito pensar nessa história é a grande dificuldade do mercado publicitário em fazer não-ficção audiovisual, seriada, com formato, contando uma história a partir de um formato para internet ou televisão para seus clientes. Cada vez que sento em uma reunião de agência e escuto as palavras “marca-storytelling-web série-viral” na mesma frase, eu penso: lá vem merda. Dificilmente eu me engano. É que agora os puros precisam se misturar aos parias, se quiserem de verdade criar conteúdo que tenha views, likes e principalmente compartilhamento. Pensar como antes, não vai levar a lugar algum. Os 30 segundos agonizam em coma. Mesmo que esse coma dure 100 anos.

A questão da não-ficção é tão séria que as vezes é muito difícil encontrar profissionais para trabalhar nos formatos. Ou eles estão ocupados ou não existem. Os Festivais ignoram e desprezam a não-ficção/humor. Cursos de não-ficção são raros, mesmo os que existem morrem logo por falta de aluno ou interesse. O Fundo Setorial e a Ancine também torcem seus narizes. Política de desenvolvimento para a não-ficção é pouca. Às vezes rebaixa nota de avaliação. Mas sabe qual é a real? No final do dia, na hora de fechar o caixa é justamente a não-ficção/humor que paga a conta, por ser mais barata, rápida de produzir e com resultados efetivos nesse brinquedinho caro chamado audiovisual.  

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