A sagrada família

Aconteceu que depois de quatro anos, Soraia, que é bióloga, tinha conseguido finalmente entregar a sua tese de doutorado. Não tinha sido fácil principalmente quando precisou adaptar o tema, para as exigências do laboratório de estudos do genoma humano. Ninguém entendia muito bem o que a Soraia fazia. Só que era uma coisa difícil. Naquele dia, Marte, seu regente estava no alto do céu e Vênus em harmonia com Saturno, faziam tudo ter um ar auspicioso, como falou quando ligou para a sua esposa, a Marcela. Elas combinaram de mais tarde encontrar os amigos para uma cerveja e quem sabe aproveitar para ficarem mais próximas. Não estavam bem. A analista financeira, a Marcela, trabalhava muito. E justo naquele dia, Vênus e Saturno se desentenderam para ela. Apareceu uma diferença nas contas do banco onde trabalhava e ela não podia arredar o pé dali, até descobrir onde estava o dinheiro. Soraia ficou brava. De novo a mesma história. Tomou uma cerveja belga a mais, com 18% por cento de álcool. Precisou ir ao banheiro e na saída encontrou o Dudu na porta. E não se sabe ao certo se foi a quarta cerveja belga, Vênus ou Saturno, ou algo engraçado que ele falou e ela riu, voltaram para dentro do banheiro. Trancaram a porta. Soraia esqueceu de Dudu no dia seguinte, mas no fim do mês os enjoos, o atraso na menstruação e “aquele maldito exame de farmácia” comprovaram: estava grávida. Esperou até as duas da manhã, daquele dia em que esqueceu de ler o horóscopo e contou para Marcela. A analista financeira olhou para o relógio e disse a si mesmo que uma mãe de família não poderia chegar em casa àquela hora. E sem querer sentiu-se mãe. Depois quis saber do pai.
– O  Dudu é só um amigo.
- Mas ele precisa saber.
Marcela também quis saber se Soraia amava o Dudu, se ela ia sair de casa, se ia ter a criança. Bom, nada disso aconteceu. O Pedro nasceu com duas mães e um pai. Marcela que odiava o trabalho no banco saiu e abriu uma floricultura. Soraia foi trabalhar em outro laboratório. Trabalhava muito e ainda dava aula na pós-graduação da faculdade. Marcela cuidava do Pedro. Mas Dudu achava que o menino estava muito mimado. E resolveu dar um jeito naquela história: adotou um cachorro. O Pedro, amou o Betoneira, o cachorro. Soraia não ligou muito. Mas todo mundo teve a certeza que Marcela ficou com ciúmes do cachorro. É claro que ela não ia admitir. No domingo, no parque resolveu provar que estava acima desses comentários maldosos daquela família: pediu ao moço do cachorro-quente para tirar uma foto dos cinco e fez questão de segurar o Betoneira no colo. Prometeu a si mesma imprimir aquela foto e colocar na sala de casa.
D.Else tinha três filhos. Duas meninas e um menino. A Márcia era a mais velha, o Naldinho o do meio e a Juliana a mais nova. Seo Ermírio, antes de morrer, vivia chamando a Ju da sua filha prafrentex.  É que a Ju adorava viajar. Antes dos 24 anos, já tinha ido duas vezes para a África e perdido as contas das vezes em que esteve na Europa. Naquele tempo, Ju  estava na Nova Zelândia e Márcia, a advogada, ficou brava com a irmã que não se deu ao trabalho de voltar para o casamento do irmão. Naldinho fez uma cerimônia tão bonita. O pai já não estava presente. Custava ter voltado? Mas a Ju não voltou. Só chegou ao Brasil alguns meses depois e grávida de cinco meses. Não quis falar quem era o pai “pouco importa”. Prometeu fincar raízes para cuidar da Gisele. Márcia, que era louca por sapato, antes da sobrinha nascer já tinha comprado quase todos os tipos que uma criança pode usar. Quando Gisele nasceu tinha botinha, tênis da Nike, sapatilha de lacinho.... A Juliana achava tudo aquilo uma bobagem. Mas, resolveu deixar pra lá. A irmã ajudava com o dinheiro e cuidava da filha. Mas era D. Else quem ficava a maior parte do tempo com a menina. A Ju passou a trabalhar das nove as seis e não conseguia tirar da cara a expressão de “passarinho preso na gaiola” que D. Else tanto lhe pedia. A Marcia colocou a Gisele no balé e as irmãs brigaram. Mas a Gi quis continuar. A Marcia foi promovida no trabalho e para comemorar resolveu comprar para cada uma um sapato. Podiam escolher. D. Else ficou com uma sandália ortopédica, que seu joanete tanto pedia. A Gisele não se conformava que não podia ganhar uma sandália de salto. Mas nesta questão tanto Márcia, quanto Ju concordavam: criança não pode. Gi achou injusto, mas nem adiantou olhar para a avó. Ju escolheu a bota de caminhada que custava uma fortuna: vulcanizada, impermeável e leve. Não se sabe se foi a bota, mas logo depois, a Ju foi chamada para trabalhar novamente na Nova Zelândia, para ser guia em um parque e ajudar estudantes brasileiros. Até a Gi concordou que a mãe era muito infeliz. As duas combinaram que quando Gi soubesse se virar ela ia encontrar com a mãe. Marcia ficou com a guarda da sobrinha. Aquilo deu uma alegria tão grande na advogada que ela comprou uma sandália Jimmy Choo para dar de presente no aniversário de 15 anos da Gisele.  No aeroporto, dessa vez D.Else não chorou, mas prometeu a si mesma que jamais ia ensinar a neta “a se virar”. Na despedida, fizeram uma foto da família para recordação. A moça que passava não entendeu nada. Elas pediram para que fotografasse apenas os pés das quatro mulheres: uma sandália ortopédica, uma sapatilha injusta, um ankle boot de salto alto e uma bota de caminhada.
O Júlio se apaixonou pela Roberta de tal maneira que não se importou com a sua tristeza, a mania de não comer direito e achar que estava sempre gorda. Por um tempo, os dois foram felizes. Júlio não era muito de namorar. O violoncelo e a orquestra municipal tomavam todo o seu tempo. Seus pais, Vera e Ricardo, ficaram felizes de ver o filho saindo, não mais enfurnado em casa, sozinho sem se divertir. Fizeram planos para um casamento. Roberta acabou ficando grávida sem querer. Ela não queria engordar, passou a maior parte da gravidez triste e inconformada. Como muita sorte, Miguel nasceu saudável.
- Aquela desmiolada vai matar meu neto. – Vera estava muito preocupada.
Na saída da maternidade, Miguel foi direto para a casa de Vera. Júlio, ficou muito aliviado, não sabia o que fazer. Queria compor uma música para o filho e Roberta só pensava em emagrecer. Vera e Ricardo cuidaram do Miguel e quando Roberta resolveu mesmo ir embora,  Ricardo construiu um forte-apache para o neto no quintal. A criançada da rua não saia de lá. Como Júlio passava a maior parte do tempo em turnê  com a orquestra, pra facilitar deixou Ricardo com a guarda de Miguel. E no dia de pegar os documentos no cartório,  eles tiraram uma foto da família. Miguel estava vestido de índio. Finalmente convenceu a avó a costurar a roupa que ele tanto queria. Conseguiu que a avó também fizesse uma para o seu melhor amigo, o Carlinhos. E agora que o Miguel foi estudar na Austrália...
– Precisa ser tão longe? – Ricardo se perguntava

Passava as tardes dentro do Fort Apache, com saudades do filho-neto, da esposa falecida e do filho distante. E que Deus abençoe essas e tantas outras Sagradas Famílias. Na luz do Nosso Senhor Jesus Cristo, Amém. 

Comentários

Ana Carmo disse…
"E quem um dia irá dizer que existe razão nas coisas feitas pelo coração?
E quem irá dizer que não existe razão?"

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